Lei ainda precisa de regulamentação para ser aplicada
Em setembro de 2021, 10% das famílias entrevistadas na Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), realizada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), declararam não ter condições de pagar suas contas ou dívidas em atraso.
Pela chamada Lei do Superendividamento (Lei 14.181), em vigor desde julho deste ano, se confirmada a impossibilidade financeira destas pessoas saldarem despesas feitas de boa-fé (incluindo as decorrentes de compras a prazo, serviços de prestação continuada e operações de crédito), elas poderiam ser declaradas superendividadas e, desta forma, recorrer à Justiça para tentar renegociar os prazos e condições de pagamento.
Pouco mais de três meses após as novas regras de prevenção ao superendividamento e de promoção da conciliação entre devedores e credores começarem a valer, os diversos agentes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor seguem discutindo a regulamentação da lei, ou seja, o detalhamento necessário para que ela seja aplicada. Entre as principais dúvidas de quem lida com as consequências da possibilidade de renegociação de débitos e da exigência legal de promover a educação financeira estão a definição quanto ao que vem a ser o “mínimo existencial” que a Lei 14.181 estabelece que deve ser preservado para garantir às pessoas, e a capacidade dos Procons e Defensorias Públicas participarem das tentativas de conciliação entre as partes – que, espera-se, se tornem mais comuns.
Os dois aspectos foram objetos de propostas que especialistas discutiram na última quinta-feira (21), em audiência pública realizada, remotamente, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Segundo a pasta, o objetivo do evento é “propor alternativas que ajudem a regulamentar a Lei do Superendividamento”.
“O crédito traz uma série de benefícios para os indivíduos e para a sociedade, mantendo a economia aquecida. Contudo, pode levar a empréstimos concedidos inadequadamente”, disse a secretária Nacional do Consumidor, Juliana Oliveira Domingues. “O acesso ao crédito é positivo porque permite a antecipação de compras, a realização de investimentos e traz benefícios individuais e sociais. O que queremos combater é o superendividamento, [que ocorre] quando o consumidor de boa-fé manifesta a impossibilidade de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, pois isto comprometeria o mínimo essencial [para sua sobrevivência digna].”
Ao abrir o evento remoto, a secretária destacou que a preocupação com o superendividamento da população vem motivando diversos países a adotarem medidas legais, e que o próprio Banco Mundial já apontou a importância de ações preventivas a fim de evitar riscos sistêmicos às economias nacionais.
“Vários países já regulamentaram seus parâmetros de mínimo existencial, estabelecendo modelos próprios. Em alguns casos, como nos Estados Unidos e França, são estabelecidos valores mínimos ou percentuais sobre a renda, para caracterizar o [que é o] mínimo existencial. Em outros, como Colômbia e Chile, é avaliado o quanto cada consumidor pode dispor mensalmente para pagar suas dívidas – ou seja, isto é feito caso a caso”, explicou Juliana ao defender que também a legislação brasileira deve deixar claro o que é considerado mínimo existencial a fim de evitar a insegurança jurídica. “É um dever legal do poder público, com vistas a proporcionar ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e demais interessados a devida segurança jurídica na plena aplicabilidade da lei.”
Diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e considerada uma referência na área do Direito do Consumidor, a advogada e professora Cláudia Lima Marques reforçou a importância da regulamentação, mas pediu “cautela” na eventual definição de um patamar mínimo para a preservação da existência digna para que não haja reflexos negativos tanto na economia, quanto na entrada das pessoas no sistema de crédito. “O [conceito de] superendividamento não pode ser sinônimo de miserável, de pobreza, e nem sequer ser reduzido [ao valor de] um salário-mínimo, por exemplo sob risco de matarmos a lei”, disse Cláudia, propondo que o debate privilegie novas maneiras de regulamentar a concessão de crédito consignado em folha de pagamento. “Porque é justamente a consignação o que mais afeta a possibilidade das pessoas pagarem outras dívidas.”
Vice-presidente da Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor (MPCon), o promotor de Justiça Eduardo Paladino fez coro à Cláudia, pedindo “cuidado” na regulamentação da lei e lembrando que, segundo dados da plataforma consumidor.gov.br, em 2020, as instituições financeiras (bancos, administradoras de cartões, cooperativas de créditos, corretoras de investimentos, entre outros) lideraram a lista de reclamações, e que entre as queixas mais frequentes estavam justamente as que envolvem operações de crédito consignado e de cartões de crédito.
“É fundamental que cobremos das instituições financeiras mais responsabilidade na concessão de crédito, cessando a odiosa prática de frequente assédio e pressão ao consumidor, especialmente aqueles considerados hipervulneráveis [como, por exemplo, idosos aposentados com problemas financeiros]”, comentou Paladino, após classificar a sanção da Lei 14.181 como “uma grande conquista, capaz de possibilitar que milhões de pessoas se reergam financeiramente e sejam reincluídas na sociedade”.
“A regulamentação, não deve, portanto, inviabilizar sua efetividade, frustrando seus nobres objetivos”, complementou o procurador, pontuando que para a MPCon, a definição de um mínimo existencial não pode estabelecer uma “interpretação taxativa e restritiva, com base, por exemplo, apenas em determinado percentual da remuneração do consumidor ou do salário-mínimo”, devendo ser procurado “caso a caso, conforme a situação concreta e a possibilidade de pagamento de cada consumidor, garantindo recursos para sua digna subsistência familiar”.
Já o dirigente da Associação Procons do Brasil, Marcelo Nascimento, foi taxativo. “Pedimos para que, caso a lei seja regulamentada, isto não seja feito somente traçando uma régua para todos os casos, com base em um percentual. Temos certeza de que isto não só não vai socorrer, como vai prejudicar diversas pessoas que não estão em uma mesma situação. Se for para piorar, que deixemos [a Lei] como está, porque o conceito de mínimo existencial não é estranho aos operadores do direito e do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Já lidamos com isto há bastante tempo e tanto os tribunais, quanto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [STF] já se debruçaram sobre este tema”.
FONTE: Varejo SA
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